Sexto e ultimo capitulo do "fio da navalha"
Certa tarde apareceu lá na rua um amolador, um daqueles que andam de terra em terra a afiar facas e tesouras, chegou precedido do som inconfundivel do realejo de plastico, pequena gaita de beiços que se encontravam noutros tempos em feiras e romarias e que hoje não se encontram em lado nenhum a não ser nas mãos calejadas e sujas dalgum velho amolador, um daqueles que traz chuva quando toca.
- olha vai chover vem aí o amolador
O pessoal meteu conversa com o velho amolador, nem era tão velho assim, contaram-se histórias, abriram-se umas cervejas falou-se de facas assim, de facas assado, da qualidade dos aços, dos produtos baratos e rascas vindos da china...
Ele não disse nada, ouvia com atenção, observava com cuidado, tentava encontrar nas palavras do visitante indicios do conhecimento, da sabedoria do afiador...
O homem é um charlatão, nada sabe de afiar nem de cortar nem neste nem noutro mundo, não sabe nada, não sente nada...
Levou a mão ao bolso puxando da pequena faca que ainda uma hora antes tinha afiado com esmero como todos os dias depois do almoço, abriu-a num gesto automatico unicamente com a mão direita e dando um passo em frente perguntou
-Diga-me lá por favor se a minha faca precisa de ser afiada
o amolador pegou no pequeno canivete, olhou para ele com algum desdem, e passou o polegar pelo fio como é vulgar ver-se nos filmes
-Sim! sentenciou, Precisa mesmo de ser afiada está muito romba
Os outros olhavam e ouviam incredulos
-Tem a certeza?
-Então não tenho? afio facas há mais de trinta anos
-Desafia facas há trinta anos
Ele retirou a faca das mãos do amolador
-Esta faca está afiadissima, corta este e o outro mundo, o senhor não percebe nada de afiar
-Ninguem sabe mais do que eu ouviu!
O amolador avançou num gesto ameaçador...
...os presentes juram que não viram nada...
...a garganta aberta de lado a lado do amolador jorrava sangue...
...a faca cintilava...
O amolador foi prontamente assistido, não morreu, por pouco, mas não morreu
Ele foi preso e a faca confiscada, nessa noite dormiu na esquadra para ser apresentado ao juiz na tarde seguinte.
Pela hora do almoço do dia seguinte ele pediu que lhe devolvessem a faca o que foi liminarmente recusado com alguns comentários jocosos e injuriosos á mistura.
Depois de almoçar adormeceu...
Foram lá buscá-lo para o levar perante o juiz, mas ele nunca mais acordou...
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sexta-feira, 29 de julho de 2011
quarta-feira, 22 de dezembro de 2010
Afiar os dias ...
Ninguem mais troçava, todos os que lidavam com ele no dia a dia acostumaram-se a vê-lo todos os dias afiar a pequena faca, tanto se habituaram que deixaram até de ver o ritual diário. Era tudo parte da paisagem social daquela rua, daquele bairro . Para ele há muito que aqueles gestos tinham passado a fazer parte daquele conjunto de pequenas coisas que constitue a realidade do ser humano. Aquelas coisas anónimas, intimas, que todos fazem diariamente mas das quais nunca ou quase nunca se fala a não ser quando alguma coisa corre mal, acidente ou doença, essas mil e uma pequenas coisas fisiológicas das quais dependemos quase por completo e das quais nem nos lembramos. Mas, sem que ele se apercebesse nem ninguem notasse, para ele o afiar da faca tornou-se no eixo ao redor do qual giravam os seus dias e as suas noites.
Ele não sonhava, mais exactamente há muito que não se lembrava de sonhar mas certo dia apecebeu-se, lembrou-se ao de leve de trechos dum sonho. Foi uma lembrança quase imperceptivel, daquelas que nem se sabe se é mesmo lembrança ou se sonhou que se lembrou. Mas passados dias teve um vislumbre semelhante e soube então que sonhava e esse facto acabou por se impor cada vez com mais força. Os sonhos tornaram-se mais reais, mais nitidos e então ele notou que nesses sonhos ele tambem afiava uma faca e sempre acordava afiando.
Ele não sonhava, mais exactamente há muito que não se lembrava de sonhar mas certo dia apecebeu-se, lembrou-se ao de leve de trechos dum sonho. Foi uma lembrança quase imperceptivel, daquelas que nem se sabe se é mesmo lembrança ou se sonhou que se lembrou. Mas passados dias teve um vislumbre semelhante e soube então que sonhava e esse facto acabou por se impor cada vez com mais força. Os sonhos tornaram-se mais reais, mais nitidos e então ele notou que nesses sonhos ele tambem afiava uma faca e sempre acordava afiando.
sábado, 9 de outubro de 2010
...cortar o sono...
Os falatórios continuaram à sua volta e as piadas trocistas tambem, até já lhe chamavam o "afia-lapis" embora nunca o tivessem visto a afiar nenhum lápis com a preciosa faca.
Certo dia em que afiava mais uma vez a lamina com todo o cuidado, passando-a pela lixa fina ora dum lado ora do outro em gestos firmes e constantes, começou a falar sobre a faca sem que ninguem lhe pedisse nada, falava como se fosse só para ele, uma especie de monólogo, quase um fundo musical para a dança da lamina.
-Não entendem..., nunca poderão entender..., porque é que esta faca deve estar sempre bem afiada, não vêem..., como poderiam ver... ela corta no invisivel... ela corta o sono da tarde, aquele que sempre me atormenta depois do almoço, corta o sono às fatias fininhas e os sonhos nascentes também para que o vento os leve para longe... não, não entendem... mas é melhor assim...
-Pera aí, tu estás a dizer que cortas o sono às fatias?
-Sim corto, mas vocês não o podem ver
-Mas nunca te vi cortar nada... nem fazer o gesto de cortar... pões essa coisa no bolso e pronto
-São mistérios que não consegues ver nem alcançar
-Sabes uma coisa? Tu és completamente maluco! e riu-se alto em grandes gargalhadas.
Durante uns dias foi motivo de chacota de toda a vizinhança
Ah!!Ah!Ah!, cortar o sono ás fatias!!! Ah!Ah!Ah!
Ele não se impressionou com a troça, dia após dia continuou a manter o ritual de afiar a faca.
Certo dia em que afiava mais uma vez a lamina com todo o cuidado, passando-a pela lixa fina ora dum lado ora do outro em gestos firmes e constantes, começou a falar sobre a faca sem que ninguem lhe pedisse nada, falava como se fosse só para ele, uma especie de monólogo, quase um fundo musical para a dança da lamina.
-Não entendem..., nunca poderão entender..., porque é que esta faca deve estar sempre bem afiada, não vêem..., como poderiam ver... ela corta no invisivel... ela corta o sono da tarde, aquele que sempre me atormenta depois do almoço, corta o sono às fatias fininhas e os sonhos nascentes também para que o vento os leve para longe... não, não entendem... mas é melhor assim...
-Pera aí, tu estás a dizer que cortas o sono às fatias?
-Sim corto, mas vocês não o podem ver
-Mas nunca te vi cortar nada... nem fazer o gesto de cortar... pões essa coisa no bolso e pronto
-São mistérios que não consegues ver nem alcançar
-Sabes uma coisa? Tu és completamente maluco! e riu-se alto em grandes gargalhadas.
Durante uns dias foi motivo de chacota de toda a vizinhança
Ah!!Ah!Ah!, cortar o sono ás fatias!!! Ah!Ah!Ah!
Ele não se impressionou com a troça, dia após dia continuou a manter o ritual de afiar a faca.
sexta-feira, 24 de setembro de 2010
Ritual afiado
Este habito peculiar de afiar a faca todos os dias pela mesma hora chamou a atenção dos colegas de trabalho.
-Essa faca vai acabar por ficar bem afiada
-Já está bem afiada
-Mas o que queres tu cortar com isso
-Nada de especial
-Então não precisas dela tão afiada pá
-Preciso sim
-Para descascares fruta? Ainda te cortas com isso
-Não se preocupem que eu cá sei
Ele não se queria alongar sobre o assunto, mas volta e meia a vizinhança voltava á carga. O ritual, cada dia mais formalizado levava a todo o género de comentários e de especulações.
-O que fará ele com aquela faca?
-O gajo é um pacato do caraças, não é de brigas nem desacatos, muito menos homem de faca...
-Tambem aquilo nem é faca nem nada, um canivete pequeno, nem dá jeito para cortar nada.
-Essa faca vai acabar por ficar bem afiada
-Já está bem afiada
-Mas o que queres tu cortar com isso
-Nada de especial
-Então não precisas dela tão afiada pá
-Preciso sim
-Para descascares fruta? Ainda te cortas com isso
-Não se preocupem que eu cá sei
Ele não se queria alongar sobre o assunto, mas volta e meia a vizinhança voltava á carga. O ritual, cada dia mais formalizado levava a todo o género de comentários e de especulações.
-O que fará ele com aquela faca?
-O gajo é um pacato do caraças, não é de brigas nem desacatos, muito menos homem de faca...
-Tambem aquilo nem é faca nem nada, um canivete pequeno, nem dá jeito para cortar nada.
sábado, 18 de setembro de 2010
...o fio da navalha
Dia após dia ele fazia a mesma coisa, puxava da lixa fina, enrolava-a à volta do cabo do martelo ou da lima, e começava a afiar a faca, molhava a lixa dum pouco de saliva na ponta do dedo passado como uma caricia, e deslizava a lamina ora para a direita ora para a esquerda até obter na borda aquele brilho letal das espadas de samurai e o fio da navalha invisível de tão fino, de tão fio. Então, puxava para cima a perna da calça e logo acima da meia rapava alguns pêlos da perna, abrindo mais uma pequena clareira de brancura, conferindo a eficácia do corte. Acenava satisfeito enquanto sacudia os pêlos cortados, dobrava a faca e devolvia-a ao bolso.
quinta-feira, 16 de setembro de 2010
...de cortar á faca
Todos os dias, depois do almoço, uns trinta minutos depois de terminar a refeição, ele pegava na sua faca de bolso, um canivete vulgar, e, puxando dum pedaço de lixa fina, afiava-a com o maior cuidado até ao ponto dela cortar como uma navalha de barbear.
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